CORAÇÃO NA MESA

Daniel Kondo Daniel Kondo

OS VASINHOS DO MEU JARDIM

É março, mês da florada: o que é feminino vive sua primavera. E a amizade entre as mulheres floresce – a sororidade, essa rede de apoio invisível que tecemos juntas. Amigas são feitas, encontradas e recuperadas a qualquer tempo e lugar – no trabalho, na cozinha, na maternidade compartilhada…

1. Os vasinhos do meu jardim

É março, mês da florada: o que é feminino vive sua primavera.  

E a amizade entre as mulheres floresce – a sororidade, essa rede de apoio invisível que tecemos juntas. 

Amigas são feitas, encontradas e recuperadas a qualquer tempo e lugar – no trabalho, na cozinha, na maternidade compartilhada, nas lágrimas choradas em silêncio, nos brindes erguidos aos céus em unhas coloridas e cabelos gris.

Comigo acontece muito no trabalho. Tanto faz o que estava fazendo, o que ia fazer, o que tinha em mente ao marcar o compromisso profissional com a especialista: cada vez que uma mulher senta com outra para trabalhar, brota uma amizade. Surgiu um vasinho novo. 

Foi assim que encontrei na especialista em Direito uma ouvinte sincera; na jornalista curiosa, uma desbravadora do que nem eu mesma sei sobre mim; na master RP, uma alegre companhia de ideias de mudar o mercado – e o mundo, enfim! É esse meu jardim, com vasinhos diferentes e especiais, todos necessariamente nessa desordem. 

Todo o mato está em flor e eu me sinto num jardim
(Dunas, Rosa Passos)


2. Cozinha ou cozinho? 😉

É delas ou deles? Houve um tempo em que às gurias cabiam as obrigações culinárias. Nada de se meter profissionalmente na cozinha. 

Aos guris, o lugar de honra, o business de sucesso e muita grana. 

Eles são os cozinheiros do avental dourado, os chefs, os empreendedores da Gastronomia!

Esse tempo aí já passou.

O gosto não é como banheiro: não existe uma cozinha para homens e outra para nós, mulheres. Com a barriga no fogão e a pia cheia, estamos presentes na Gastronomia com pratos, receitas e estilos que não se dividem por sexo, tá? 

Tem coisa que eu faço e o Jun Sakamoto também. Tem comida do André Mifano que eu amo e não me atrevo a fazer; tem a criatividade que mora igualmente na Helena Rizzo e no Marcelo Schambeck, conterrâneos separados geograficamente; tem a originalidade que é da Morena Leite. Faz diferença? 

A cozinha é diversidade no sabor, e igualdade na hora de pegar caixa, arrastar o freezer, pagar boletos, cortar julienne, chorar na cebola.

No espeto corrido da história, aproveita que lá vem o xixo (pra quem não sabe: é um espeto que mistura legumes e carnes variados) e experimenta! Tem receita do Schambeck no final.


Traz todo mundo, tá liberado!
(Não é proibido, Marisa Monte)


3. A menina dança

Prometo que não vou falar mais na minha mãe... mas é mentira. 

Se penso nas mulheres, nas amigas, nas phodonas que suaram no fogão ou no computador, no sol a pino ou no escuro do quarto, aterrisso suavemente nos braços cheios de história e coragem da Marlene. Mulher, mãe, avó, escritora, fonoaudióloga um pouco bailarina. E quem não é, nesse baile? 


Quando eu cheguei, tudo, tudo estava virado
(A menina dança, Baby Consuelo)


Ragu de costela com cogumelos

Marcelo Schambeck/Restaurante Capincho

Para 4 pessoas 

Ingredientes

  • 500g de costela desfiada (assada na brasa ou no forno ou mesmo cozida na pressão)

  • 200ml de molho demi-glace

  • 1 cebola picada

  • 1 dente de alho picado

  • 2 cebolas pequenas

  • 1/4 de maço de manjerona

  • 50g de extrato de tomate caseiro

  • 300g de cogumelo eryngui

  • Manteiga

  • Sal

  • Pimenta do Reino

Modo de Preparo

  • Numa panela, refogue a cebola picada até dourar.

  • Junte o alho e as folhas de manjerona.

  • Coloque o molho demi-glace e o extrato de tomate.

  • Deixe ferver por um minuto e acrescente a costela desfiada.

  • Se necessário, ajuste sal e pimenta.

  • Reserve.

  • Corte as cebolas pequenas ao meio e grelhe até dourar bem as "bordinhas".

  • Reserve.

  • Corte os cogumelos ao meio e com uma faca faça pequenos cortes em "x".

  • Grelhe na manteiga os dois lados.

  • Para montar, sirva a costela e coloque sobre ela os cogumelos e as cebolas.

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Daniel Kondo Daniel Kondo

FLORES

As cenas mais recentes que trago da Porto Alegre têm flores: nas mãos inanimadas de minha mãe e em todo seu contorno na plataforma de embarque para o céu; nas vestes almodovarianas de minha filha para o funeral da avó, nas águas imprecisas do lago Guaíba sob seu sol laranja, cobertas de pétalas brancas, oferendas que fizemos à Marlene.

Flores

As cenas mais recentes que trago da Porto Alegre têm flores: nas mãos inanimadas de minha mãe e em todo seu contorno na plataforma de embarque para o céu; nas vestes almodovarianas de minha filha para o funeral da avó, nas águas imprecisas do lago Guaíba sob seu sol laranja, cobertas de pétalas brancas, oferendas que fizemos à Marlene.

Há flores em tudo que vejo...

Flores singelas em uma garrafinha de vidro sobre a mesa no Capincho, o restaurante de Marcelo Schambeck que escolhemos para nos alimentar com mais que tristeza e água mineral, a refeição dos últimos dias

Floriana estava na cidade ligada em tudo. Foi lá para isso: enfrentou o sofrimento da avó dedicada a acompanhá-la até o último instante – e foi o que fez: sob rezas, perfumes e canções, junto com o primo, entregou-a nas mãos do infinito. A passagem que se tornou seu próprio rito de transformação. Minha filha, a neta mais velha, segurou a mão da avó que sempre a trouxe no colo, embalando-a com sabedoria, conhecimento, afeto – amores-perfeitos. Enquanto isso, Julia, a filha mais nova, segurou as minhas mãos, minhas angústias e meus braços furados de cateteres e agulhas, ora apoiando, ora empurrando, quando preciso, controlando a preocupação e o abatimento enfeitada por miúdas margaridas de seu universo pop nostálgico.

Florisbelas. Escolheram o menu degustação e Schambeck tratou de servir atenção e carinho na sequência colorida, perfumada e surpreendente. O arroz de cogumelos eyringii deixou aquele conforto na alma. Fizemos como nas tradições populares: bebemos e comemos aos mortos da nossa história, minha mãe.

Há flores cobrindo o telhado, embaixo do meu travesseiro (Flores, Titãs).

Adeus, Porto Alegre

O que tem de especial em Porto Alegre está acima do chão
(Porto Alegre, Nenhum de Nós)

A viagem do adeus. Aterrissei no mood de despedida – intermináveis lembranças dessa cidade onde escrevi as primeiras páginas de minha história familiar de afetos, arte e comida. Sou nascida na Porto Alegre dos anos 1960, vivi na capital até o comecinho dos coloridos 1980 e pude experimentar muitos sabores do mundo passeando no sobe e desce da cidade.

Desde pequena, com meu pai, habitué das boas mesas e que outrora foi parceiro nessas aventuras, conheci os clássicos restaurantes de Porto Alegre: o Gambrinos, 130 anos servindo mocotó e rabada – coisas estranhas para uma garota aos 15 anos... o Copacabana, que foi açougue, nos anos 50, com o nome Espina, e se tornou a cantina onde é impossível não se atirar nas entradas – polenta, maionese de batata – e depois comer de joelhos o filé à parmeggiana. Uns lugares para visitar em dias pontuais. No calor, chopp com sanduíche aberto do Prinz e muita mostarda forte. Aos domingos, carne! E lá íamos nós para a churrascaria Santo Antônio devorar os filés altos e suculentos. Ou então assistir o boi girando na porta da mítica Boi na Brasa.

Mais tarde, vivendo o mundo com minhas próprias pernas, passei a descobrir meus próprios gostos. O Doce Vida e suas histórias da louca agitação cultural da época; o IAB, onde se ensaiava o jeitão bistrô que um lugar descolado podia oferecer: prato único, ingredientes originais – um luxo! A primeira sanduicheria: Primavera! Onde você poderia encontrar, no Brasil tropical, um sanduíche com lombo de porco, ameixa e abacaxi num pão argentino? Só lá! Depois, o Sanduíche Voador: anos 80, até hoje é uma lembrança arrojada que trago na memória gustativa e visual. O queridinho Ocidente, bar e casa de shows, onde eu vendia minha granola hippie e consumia a torta de ricota Por lá, uma cozinha tão pop quanto a programação, e segue bombando!

Hoje fico pulando entre as festas dos vinhos na Serra, os confeiteiros uruguaios e argentinos, a cozinha do pampa com Marcos Livi, os pães da Barbarella, os chás e ervas da Carla, a sofisticação do Marcelo Gonçalves, a ousadia do Schambeck, a primazia do Kristensen, a cozinha plural do Mandarinier. Tudo se mescla e desemboca no trabalho que desenvolvo aqui e acolá, em casas como o 1835 Carne e Brasa, instalado no topo da paisagem serrana do Laje de Pedra, ou o 20Barra9, que me deu espaço para criar mais de 80 receitas de molhos, legumes, saladas, sobremesas e acompanhamentos em suas casas (tem receita no final).

Herança faz história. E comida.

Na saudade que mistura inspiração e recordações, vivo conectada à cultura de minhas origens e as carrego junto com a bagagem que agora parte comigo, no check-in do Salgado Filho.

Até a próxima, Porto Alegre!

Da janela do avião eu vejo Porto Alegre. Vejo o futuro em flashback.

Meu pai, minha filha, nossa casa.
(Por Acaso, Engenheiros do Hawaii)

Comida de hospital

A comida está para o meu cotidiano como o gás para o fogão: sem uma boa chama, não ligo.

Hóspede recente das redes hospitalares entre Porto Alegre e São Paulo, antes para minha mãe e agora para mim mesma, tenho que enfrentar a hora da refeição com cuidado. Em parte pelo desânimo que é encarar pratos branquelos e insossos, em parte pelo perigo que a desconexão entre o paciente e sua dieta pode oferecer.

Você fica com o coração na mão.

Arroz branco como a neve, um inocente purê de batatas e carninha picada com molho – faço (e como) com gosto e capricho. Separados, em geral. Quando vem tudo junto ou é porque você trabalhou carregando container o dia todo, na beira do cais – e ainda pode acrescentar feijão ao combo – ou então é uma cilada. Ainda mais se você é hóspede da Cardiologia.

Quando, no caso inverso, você pariu uma criança, duas ou mais, se forem gêmeos, e precisa abastecer o caminhão-pipa para amamentá-la(s), não dá para vir um peixe aguado com legumes desnutridos da pressão... Sem falar no pão e manteiga que é servido pela manhã: tudo que uma parturiente mais sonha é fibra e frutas para tranquilizar seus intestinos recém invadidos. Já pedi suco de ameixa, mamão e laranja a fim de fazer a máquina funcionar como deve ser.

É bem democrático: um caso mais simples dentro do hospital é tratado, em termos de alimentação, como os complexos – a comida é a mesma. Na próxima visita vou levar os cardápios Very Deli e Estação Carlota debaixo do braço: ali tem legumes variados, frutas, sucos, pães naturais, carnes, peixes e pescados saborosos, ricos e frescos. Ou distribuo cartões e QR Code para uma consultoria bacana combinando sabor e saúde. Em todo o caso, sempre tenho a minha canja de anjo (com o cabelinho) para receitar (tem receita no final). Pronto, falei.

É que a felicidade, quando eu encontrei, veio pela metade, o motivo eu não sei
(Samba sem refrão, de Samba e Amor)

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MEU CORAÇÃO NA MESA

Com uma amiga à mesa, nos reunimos na cozinha para o jantar a três. Ela, meu marido e eu. O prazer de preparar e servir a refeição é parte de mim e eles sabem: sentados, assistem à minha coreografia despreocupada. O torô (a parte mais rica do atum bluefin) está clarinho e tenro como saído do mar, trazendo seu perfume vigoroso e fresco…

Pensamentos, descobertas e receitas que pedem um coração partido


Das tripas 

Veias azuis e tripas jogadas sobre a mesa fria de inox, o vermelho cremoso e cansado deslizando em pingos longos até o chão, meu braço desbotado em amarelo e púrpura com os dedos em seta apontando a visão lúgubre: meu coração fora de mim. A cena macabra vem bater em meus pensamentos serenos a cada vez que procuro elucubrar o que terei pela frente: a cirurgia cardíaca. Procuro os médicos, os mais diversos especialistas, a fim de construir meu conhecimento e tornar sólida minha sabedoria para, então, encarar o amanhã, logo ali, com o peito aberto e a coragem escancarada! Não é um transplante, é uma espécie de retrofit que não pode mais ser adiado. Limpeza e desentupimento necessários, válvulas legítimas que possivelmente serão trocadas e terei um certificado de garantia para mais uns tantos anos em funcionamento livre de preocupações. Oxalá! 


Enquanto espero, troco hábitos que não servem mais por novas leituras, caminhadas leves, roupas (ainda mais) comfy, afagos e afetos, casa cozy, a cozinha mínima e (muito) saborosa que me encanta – o estilo de vida do qual me aproximava e afastava como um ioiô enredado que não cumpre sua função. Agora é pra valer! Vou encarar a mesa, o bisturi e o conserto das peças no motor que está batendo pino e sairá como novo (não é assim quando se arruma o carro velho?). 


Sentirei falta de minha mãe, partida recentemente – e muito bruscamente. Mas conto com sua presença nas lembranças alegres e amorosas que ela distribuiu e que revejo nos gestos de minhas filhas. De mãos dadas com elas, concluo o sonho ruim com o coração no peito, onde é seu lugar, e a sensação feliz de estar de volta à vida!


O que os olhos leem

Perto do Coração Selvagem, Coração Delator, Meu Coração de Pedra-Pomes, Eu e Esse Meu Coração... clássicos e pops da Literatura brasileira e mundial com o tema cárdio andam passeando pelo meu colo, pela cozinha e minha biblioteca entre receitas e curiosidades que são meu suplemento de vida. Quero saber tudo sobre o músculo que me habita e que, se não está me dando sopa, está rendendo um caldo em meu contrito peito e em minha imaginação sem limites. Vou lendo aos poucos os que encontro, as indicações, os presentes em capa dura ou com orelhas, os descobrimentos que topo navegando em várias línguas à busca de mais sabor e sabedoria.

O coração selvagem de Clarice é como uma angina: brusco e inclemente. E, como a autora, universal: publicado pela primeira vez em 1943, quando tinha 20 anos de idade, fala com o coração de uma mulher em qualquer tempo e lugar. Edgar Allan Poe teme que seu próprio coração o entregue no conto em que o terror mora dentro do próprio peito e a loucura não tem residência fixa – o Coração Delator. São para ler e reler, com todas as palpitações a que se está sujeito. Eu e Esse Meu Coração é um romance young-adult da autora americana C. C. Hunter que faz ficção com a situação real que enfrentou junto ao marido, transplantado e salvo da morte. A personagem que limpa o hospital e coleciona besouros, da escritora e roteirista Juliana Frank, em Meu Coração de Pedra-Pomes, é minha próxima aventura que virei aqui relatar assim que for devorado. 

Torô

Com uma amiga à mesa, nos reunimos na cozinha para o jantar a três. Ela, meu marido e eu. O prazer de preparar e servir a refeição é parte de mim e eles sabem: sentados, assistem à minha coreografia despreocupada. O torô (a parte mais rica do atum bluefin) está clarinho e tenro como saído do mar, trazendo seu perfume vigoroso e fresco. Em cubos, no prato de louça portuguesa, derramo sobre o tartar o azeite virgem italiano, a ciboulette picada na faca, e um nadica de sal. Siciliano em raspas, alcaparrinhas e mostarda ancienne para completar. Vai derreter na boca – é por isso seu nome em japonês, toro. Na travessa colorida, cortei ao meio os tomatinhos firmes com folhinhas de manjericão e de novo o azeite. No bowl branco, as folhas frescas rasgadas com limão – qualquer complemento fica por conta do conviva, está à mesa: azeite, sal, balsâmico. Para eles, um pote de torradinhas fininhas feitas em casa com o pão de fermentação natural que sobrou dia desses. Chá gelado para beber. A pesca desse atum tem muitas restrições, por estar ficando raro, e é essa qualidade que ressaltamos no encontro.

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