O Fantástico Pirarucu
O lendário peixe gigante do Amazonas é uma carne nobre utilizada em vários tipos de preparo. O pirarucu já correu risco de extinção, e, agora, controlado pelo manejo sustentável, é um produto com alto valor nutritivo e gastronômico que conquista o paladar e o mercado brasileiros.
Meu ceviche amazônico com pirarucu (foto Leticia Abdo)
O peixe fascinante, cercado por fantasia e mistério, seja pelo seu tamanho colossal — pode chegar a três metros e pesar até 250kg —, seja pela beleza da coloração vermelha de suas escamas (em tupi, pirarucu quer dizer peixe vermelho*) ou as lendas e mitos que o cercam, oferece muitas possibilidades de consumo. Por sua carne firme, rica e saborosa; pela originalidade de sua pele, utilizada na moda e no design, pelos ossos e escamas: tudo é aproveitado.
Fiz um ceviche delicioso com a carne — a receita está no final! E ainda tenho uma bolsa linda, produzida com a pele.
Cerca de 20 anos atrás, isso não seria possível, pois a pesca descontrolada levou a uma queda dramática na população de animais. O esforço conjunto entre os povos tradicionais e ribeirinhos da Amazônia, entidades de conservação, órgãos ambientais e grupos específicos para a proteção do peixe, aplicando técnicas de manejo e controle, resultou no crescimento da espécie e no desenvolvimento sustentável das comunidades que vivem do pirarucu. Na ASPROC – Associação dos Produtores Rurais de Carauari, município localizado em uma região distante mais de 700 km de Manaus, Ana Alice Oliveira de Britto é uma das fundadoras e, como coordenadora de comercialização, está cumprindo os objetivos da entidade: organização e comércio da produção do pirarucu e a consequente melhoria da qualidade de vida dos seus produtores, preservando os recursos naturais. Ela conta que as estratégias de conservação são primordiais para o sucesso do manejo implantado na região, cumprindo as regras à risca — uma das mais importantes é a permissão para a pesca somente no período entre junho e novembro, exclusivamente nas áreas protegidas, e com o cuidado de retirar no máximo 30% do total de peixes adultos.
O pirarucu de manejo: alguns podem chegar a 250 kg (foto Adriano Gambarini)
Floriana Breyer e Claudio Pádua, do Instituto IPÊ (arquivo Floriana Breyer)
Esse conhecimento chega até mim por intermédio da Floriana Breyer, minha filha ambientalista, Mestre em Conservação da Biodiversidade e Desenvolvimento Sustentável pela ESCAS-IPÊ (Instituto de Pesquisas Ecológicas). Flor tem livros publicados sobre sua paixão e dedicação à causa ambiental e está engajada em expandir a frente de bioeconomia com produtos do portfólio de pesquisas do IPÊ. Claudio Pádua, criador do Instituto, e Floriana estão em Manaus prospectando oportunidades de agregação de valor para cadeias produtivas da sociobioeconomia, entre elas o pirarucu. Floriana e eu somos sócias no Estúdio CP, onde ela é responsável pela curadoria de ingredientes de origem que regularmente trazemos para o público em formato de aulas, degustações, jantares, palestras. O pirarucu em breve fará parte desse conteúdo.
Também conhecido como bacalhau da Amazônia, o pirarucu é servido em diversos pratos típicos do Amazonas e do Pará. Um deles é o pirarucu à casaca, receita caseira que lembra o bacalhau à Brás, com ovos, cebolas, pimentões, abrasileirado com a farinha d’água, a banana da terra e o leite de coco. A comparação com o bacalhau se deve, em parte, pelas características da carne do pirarucu — firme, branca, carnuda — e pelo fato de o povo ribeirinho conservar o enorme volume do peixe seco em sal, permitindo que seja armazenado durante o defeso, período em que a pesca e a caça são proibidas. Eles mesmos, pescadores, costumam comer o peixe com açaí e com farinha d’água.
O beneficiamento do pirarucu é feito no local da pesca: limpo, eviscerado e gelado, é transportado com segurança até os mercados de consumo — desde Manaus até o Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Belo Horizonte. O projeto de fazer presença com o peixe à mesa da gastronomia é missão da Gosto da Amazônia, uma marca coletiva que realiza a comercialização do pirarucu selvagem de manejo, onde Ana Alice está dedicada. A Gosto da Amazônia trabalha com os cortes do pirarucu: lombo, a parte mais nobre, alta e magra; a barriga, de sabor e textura característicos, com mais untuosidade da gordura, e o filé, corte tradicional de sabor marcante. A carne do pirarucu é muito versátil, aceita diversos tipos de preparo — ceviches, caldeiradas, grelhados e até pratos mais elaborados, como uma pururuca feita com a barriga. Com o propósito da preservação e da promoção do sabor e textura do peixe mais representativo da fauna de água doce brasileira, chefs de cozinha, como Felipe Schaedler, do Banzeiro, e Debora Shornik, do Caxiri, estão engajados no projeto, realizando ações e eventos onde apresentam receitas incríveis.
O meu ceviche, feito com o lombo do pirarucu, acompanhado de vinagrete de feijão manteiguinha (fotos Leticia Abdo)
Diz a lenda que o pirarucu foi um indígena forte e bravo, porém de má índole, que desafiou Tupã e os membros de sua tribo. Com um raio, foi transformado no grande peixe condenado a viver nas águas do rio. O índio se tornou um peixe generoso: todas as partes podem ser apreciadas e utilizadas. Depois da carne, as escamas são comercializadas como artesanato e estão fazendo parte de pesquisas para a produção de cimento ósseo para implantes; a língua áspera, após seca e higienizada, pode ser utilizada como ralador de alimentos e os ossos são transformados em farinha de peixe, aplicada na alimentação animal.
A pele oferece um plus: tratada através de curtimento e tinturas orgânicos, é destinada à produção de bolsas, cintos, sapatos e até objetos decorativos. É isso que Denise Gerassi vem fazendo há 10 anos com a sua marca de bolsas produzidas a partir do couro do pirarucu, que, imaginem, já foi desprezado como refugo. Tratado em criatórios regulamentados, curtido com produtos orgânicos livres de metais pesados, passou de descarte a precioso subproduto da indústria pesqueira.
Denise, que é química e farmacêutica, envolve-se pessoalmente no processo de preparo do couro do pirarucu, preocupada em obter beleza e qualidade e preservar a matéria-prima e a sustentabilidade da cadeia. Isso permite obter cores vivas, naturais, texturas diferenciadas e a originalidade das peças.
Denise Gerassi fabrica as bolsas lindas com a pele certificada do pirarucu (foto divulgação)
Eu fico feliz com meu ceviche de lombo de pirarucu e a bolsa do couro do peixe fantástico que ainda estamos por descobrir, ao compreendermos a importância de sua conservação e consumo sustentáveis.
*A palavra pirarucu vem do tupi, resultado da junção dos termos: pirá, "peixe" e urucum, "vermelho".
Ceviche amazônico, por Carla Pernambuco
Ingredientes:
150 gramas de lombo de pirarucu
150 ml de tucupi amarelo Manioca
suco de 1/2 limão Taiti
10 ml de mel
1 cebola roxa laminada
1 pimenta dedo de moça
1 pimenta de cheiro
Geleia de pimenta de cheiro Manioca
Tapioca flocada Manioca
Coentro a gosto
Pimenta do reino moída
Modo de preparo:
Faça sashimis com o peixe e reserve em uma tigela com gelo.
Fatie a cebola e as pimentas finamente.
Misture em uma tigela: o tucupi, o suco de limão, azeite, sal, mel.
Misture bem e adicione as cebolas e as pimentas. Envolva o peixe na mistura.
Ao montar o prato, use um vinagrete de feijão manteiguinha.
No prato, faça pequenas gotas de geleia de pimenta de cheiro e brotos de coentro com tapioca flocada Manioca para enfeitar.